O escritor Antônio Torres, ele também um amante do Porto, entrou em contato e me enviou um texto que escreveu sobre a
cidade e o tempo em que nela viveu. É um texto longo, talvez não
verdadeiramente apropriado a um blog mas vai abaixo publicado porque é
primorosamente bem escrito, como tudo o que ele escreve.
O Porto
bebido e revivido
Antônio Torres
1.
Esta história começa na Regaleira, na rua
Bonjardim, numa noite de verão do ano de 1965.
Personagens à mesa: o Sr. Coelho, um homem elegante,
empertigado, calvo e poderoso; um irmão dele - talvez se chamasse José -, de aparência modesta, como se a sua
falta de capricho na maneira de vestir-se fosse uma estratégia, para não
ofuscar o brilho do outro, notoriamente mais importante e vaidoso; os demais,
num grupo de seis pessoas, eram da mesma família, moças e rapazes que pareciam
só ter olhos e ouvidos para o digníssimo cavalheiro que, naturalmente, iria
pagar a conta.
Havia, porém, um corpo estranho nesse quadro familiar: um
brasileiro de 24 anos, recém-chegado de São Paulo, para trabalhar como redactor
de uma agência de publicidade em Lisboa, chamada Belarte, uma empresa que, como
o seu dono, tinha a sua origem no Porto, onde mantinha a sua sede ou
casamatriz. O Sr. Coelho - eis o homem -, achou
que era pelo Porto mesmo que o brasileiro faria o seu baptismo de fogo. Os
dois, o patrão e o empregado, chegaram por via aérea, no final de uma bela
tarde de domingo. Quando o avião começou a descer, o Sr. Coelho fez o
brasileiro olhar pela janela, dizendo-lhe: “O senhor está a chegar a uma cidade
de heróis.” Ao dizer isso, esboçou um sorriso, não apenas satisfeito por haver
produzido uma frase de impacto (não fora ele o dono de uma agência de
publicidade), mas por estar prestes a pôr os pés no chão onde havia nascido. Em
seguida, tirou do bolso um espelhinho e um pente. Mirou-se no
espelho, que segurava com a mão esquerda e, com a direita, ajeitou cuidadosamente os cabelos que ainda
lhe restavam, nas laterais da cabeça. Voltou a sorrir. O brasileiro achou que
era bom trabalhar para um homem feliz, que, com toda a certeza, devia se
considerar um herói, por ser um filho do Porto. Só não entendia porque esse
homem tão feliz o chamava de “senhor” Que infelicidade! No Brasil, isto era uma
consideração para com os mais velhos ou uma formalidade para com os superiores
hierárquicos. Lá não era costume chamar-se um jovem de “senhor”. Tratando-o
assim, o Sr. Coelho fazia-o sentir-se
um ancião, aos 24 anos.
Em terra, uma caravana os aguardava. O irmão do Sr.
Coelho parecia indócil, ao perguntar, várias vezes, pelo brazuca, que se sentiu uma ave
exótica ao ser chamado desta maneira. Mas logo percebeu o tom afetuoso do
tratamento. Foi recebido com efusivos votos de boas-vindas. Nada mal, para
começar.
Do aeroporto seguiram todos para o Grande Hotel do
Império, na Praça da Batalha. O Sr. Coelho e o seu redactor importado de São
Paulo subiram aos seus quartos, que ficavam lado a lado, lá deixaram as suas
malas e voltaram imediatamente ao saguão, para juntarem-se novamente à comitiva e seguirem com ela
até à Regaleira, onde o
brasileiro seria batizado com vinho verde na sua opípara primeira noite no
Porto.
A mesa regalava-se a cada garrafa comandada pelo Sr.
Coelho. “Embriagai-vos! De vinho, de poesia ou de virtudes!”, pensava o
brasileiro, já um leitor de Charles Baudelaire. Mas o irnão do Sr. Coelho tinha
pensamentos mais prosaicos. Queria saber se era verdade que os papagaios do
Brasil falavam. Ao ser informado que alguns até cantavam o Hino Nacional, ele
entrou em êxtase, como se acabasse de ouvir a coisa mais extraordinária que
alguém já tivesse lhe contado. E, revirando os olhos, com o enlevo de uma
criança, confessou o maior sonho de sua vida: “Ah, gostava muito de ter um
papagaio. E dos mais faladores!”
O brasileiro, embora sensibilizado com o desejo do seu
afável interlocutor, o senhor portuense que o recebera tão efusivamente, temeu
pelo rumo da conversa. E não sem razão. Não demorou muito para o irmão do Sr.
Coelho dar a cartada definitiva, ao perguntar se ele por acaso tinha prestígio
suficiente no Brasil para mandar vir de lá um papagaio. E agora? Papagaio! (No
Brasil, essa
exclamação significava: - Caraças!). Como sair dessa, sem deixá-lo
desapontado? A situação não era das mais fáceis, até porque o homem era irmão
do patrão. Naquele momento ele, o brasileiro, deu voltas à cabeça. Finalmente
entendia a razão da ansiedade daquele que tanto havia perguntado, no aeroporto,
se o brazuca viera, e de
todos os salamaleques da recepção. Tudo por um papagaio!
- Temos
problemas em relação a isso - disse o brasileiro. - A fiscalização da Sociedade Protetora dos Animais é muito rigorosa com a
saída de aves e pássaros do Brasil. Há uma lei que proibe isto.
Ufa! Foi duro dar essa resposta àquele que tanto sonhava
ter um papagaio.
O homem murchou. E emudeceu, num deplorável estado de
desilusão. Não seria de estranhar se, mais tarde, na calada da noite, ele
viesse a dizer para o irmão que a vinda do brasileiro não tinha valido a pena.
Uma providencial voz feminina quebrou o silêncio, que já se tornava tenebroso:
- Tem
piada! Ele é brasileiro mas não se parece com os outros.
- Como
assim?
- Ele não
tem os cabelos encaracolados como os outros.
O estranhamento tinha a sua razão de ser. De brasileiros
ela só conhecia os jogadores que atuavam no Futebol Clube do Porto, a cada
temporada, pelo visto todos negros. Ele aproveitou a oportunidade para
esclarecer que seu país era multifacetado, multiracial, multicultural,
multitudo. O Sr. Coelho, que o ouvia com atenção e interesse, de repente se deu
conta de que algo errado acontecera à mesa: o brasileiro havia deixado muita
comida em seu prato. Num tom de voz exasperado, perguntou:
- Por que
o senhor come tão pouco? É para não perder a elegância?
O brasileiro assustou-se com a pergunta, para a qual não
tinha uma resposta convincente. Distraira-se com a conversa, com o vinho, com o
brande depois do café... sabia lá por quê! Ou, vai ver, a Regaleira o deixara
com saudades de um bar paulistano chamado Baiúca, onde, àquelas horas, o Zimbo Trio podia estar tocando:
“Esta noite / quando eu vi Nanã / vi a minha deusa / ao luar...” E onde, no fim
da madrugada, o último pianista tocaria Round About Midnight, a música dos músicos, a
trilha sonora das noites das cidades grandes, São Paulo, Rio de Janeiro, Nova
York, Paris. Qual seria a música do Porto?, ele se perguntava, enquanto a voz
do Sr. Coelho interferia em seus pensamentos, superpondo-se aos sons transatlânticos
que vinham em camadas, na sua memória auditiva - o piano, a bateria, o contrabaixo, Tom
Jobim e Baden Powell, o sax de John Coltrane, o trompete de Miles Davis.
- Imagine
se coméssemos tão pouco como o senhor! Como poderíamos ter dado um Dom Afonso
Henriques, aquele que, com uma única mão, sustentava uma espada de oitenta
quilos?! - disse-lhe
o Sr. Coelho, visivelmente contrariado.
Todos riram às bandeiras despregadas, como se o patrão
tivesse contado uma anedota impagável. E quem é doido de não rir de anedota
contada por um patrão??? O brasileiro também riu. Aquela história de Dom Afonso
sustentar uma espada de 80 quilos, com uma única mão, tinha piada, sim senhor.
Não disse, mas pensou: “Caro Sr. Coelho: vim aqui para escrever os seus anúncios.
E não para levantar espadas”.
E assim terminou a
primeira noite dos meus I5 dias no Porto, daquela vez. Houve outras. A
penúltima durou 1 ano e 6 meses. E cá estou novamente.
2.
28 de Janeiro de 2000.
O brasileiro voltou e já está à porta da Regaleira, depois de
um bordejo de reconhecimento da cidade, capitaneado pelo professor Arnaldo Saraiva, que o
levou primeiramente a revê-la de cima, para a reconstituição de sua memória
visual, como num feixe de imagens do tempo a ser reconquistado. Tudo como dantes:
há 35 anos também não faltou quem o levasse a contemplá-la das alturas, no
outro lado do rio. É vendo-a de cima que se percebe que esta cidade foi uma
fortaleza que não facilitava a entrada dos seus invasores d’antanho. Percebe-se
mais: que o seu casario, tão esplendidamente fotogénico, sobe a encosta na mais
perfeita harmonia, como se cada casa tivesse sido montada por um artesão, que
depois a encaixou à mão,
tomando todo o cuidado para não destoar dos demais, que por sua vez haviam-se
desempenhado com o mesmo critério e rigor. É de cima que se vê melhor o quanto
o rio é baixo: suas águas ficam muito aquém das ribanceiras. Foi lá de cima, de
um deslumbrante posto de observação, que, por um breve momento, tentei rever a
mim mesmo, ou, pelo menos, um pedaço da minha juventude, quando perambulava no
sobe-e-desce do lado histórico da cidade, que tanto fez parte da história de um pedestre anônimo, sem
eira nem beira, no entanto a sonhar todos os sonhos do mundo, e que a um só se
resumiam: tornar-se um escritor.
E nisto o Porto não me negou fogo, nas noites e dias gelados de seus longos invernos,
nas suas chuvas de granizo a chicotear-me a cara, nos seus nevoeiros a fazer-me
andar às cegas, nos seus verões de São Martinho em pleno novembro, quando a
cidade sombria multicoloria-se, levando todos às tascas, na mais fantástica e
compreensível das comemorações, em homenagem àquele que, por um período que em
geral durava três dias, governava o Porto, fazendo jus a seu epíteto de
astro-rei.
Havia sol também nessa tarde de Janeiro. Um sol esmaecido
a produzir um efeito especial sobre o colorido das pontes, monumentos, paredes,
portas e janelas. Como as águas do rio, tudo se doura, sob a luz tênue do
entardecer. Suaviza-se a cidade granítica, que um dia a mim pareceu ter gerado
homens empedernidos, que, subconscientemeute, viviam a levantar espadas de 80
quilos, e com uma única mão! Ora viva: este brasileiro tem que reconhecer a sua
dívida de gratidão para com esta cidade que um dia lhe pareceu de pedra até a
alma, naqueles idos dos 60, nos estertores do reinado de Dom António de
Oliveira Salazar, diga-se. Como no título de Alexandre O’Neill, “Feira
Cabisbaixa”, os homens aqui pareciam viver encastelados num círculo de
desesperança, a darem voltas em torno da sua melancolia, como em todo o País.
Nestas circunstâncias, espaço e tempo, o Porto franqueou-me um laboratório para
o meu processo criativo: aqui encontrei o cenário e os personagens de um
romance chamado Os Homens dos Pés Redondos. São estes personagens e este
cenário o que tento reencontrar agora, ao chegar à Regaleira, embora já sabendo que a
cidade já não é a mesma de trinta e cinco anos atrás: repaginou-se, cedendo às
pressões do inescapável destino da modernização, aqui, registre-se, encontrando
soluções arquitetônicas surpreendentes, ao estabelecer um visível
equilíbrio entre passado e presente, tradição e modernidade. Mas vamos à Regaleira, que, trinta e cinco anos
depois, continua no mesmo lugar. Com a sua mesma porta escura e o mesmo
cartazete nela afixado: “Tripas à moda do Porto.”
Lá dentro, porém, já não parece mais a mesma. Entro e
páro. O balcão, onde o ator João Guedes - que morava em Matosinhos - e eu bebíamos cerveja acompanhada de tremoços, às vezes contando com a
alegria da presença da actriz Isabel de Castro, em temporada no Teatro
Experimental do Porto, bem, o balcão da Regaleira parece mudado. Ficou
maior e pior. Há agora um certo aspecto de decadência e vulgaridade num
ambiente que antigamente assemelhava-se a um santuário, de tão intimista e aconchegante.
No balcão, onde o João Guedes citava de memória trechos e mais trechos do Grande
Sertão: Veredas, o romance monumental do brasileiro João Guimarães Rosa,
para os seus amigos que aqui vinham reencontrá-lo sempre, o que há agora é tão
somente um solitário leitor de um jornal desportivo. É uma noite de sexta-feira e, estranhamente, só uma mesa do
restaurante está ocupada, por um casal de idade avançada. Pelo visto, a Regaleira
já conheceu noites
mais felizes. Saudades do Sr. Coelho e seus familiares. Muito mais ainda do
João Guedes. Tempus fugit. Como na música do pianista norte-americano
Bud Powell.
Deixo a Regaleira e me ponho a andar. Vou até a
esquina, à procura de uma tasca chamada Maria Rita. Ali, um desenhador chamado De Jesus,
sempre com uma tesoura ao bolso e dizendo que iria enfiá-la na barriga do seu
chefe, no dia seguinte, e o cabo Emílio, que toda noite contava a mesma
história, na qual se via como um herói, quando, ao prestar serviço militar em
Macau, deu um murro num tenente que lhe roubara a namorada, e fora posto num
navio de volta, para amargar 5 anos
de prisão - pois
estes dois memoráveis personagens do Porto já não estão entornando um copo
atrás do outro, na Maria Rita, pela simples razão de que aquela tasca não
existe mais. E eles? Ainda estarão vivos? E o que fizeram ou fazem de si
mesmos?
Vagueio pela Bonjardim em sentido contrário. Dou de cara
com o luzidio edifício de 5 andares, que era um dos pilares do dinheiro do
Porto. Ostentava na fachada um logotipo formado por 3 letras: BPM. Um
artifício, que transformou uma casa bancária em “Banqueiros.” Era isso o que dizia o “B” do logotipo,
fazendo-se passar por “Banco.” O PM significava Pinto de Magalhães, quem não
sabe? Cá estou a ver o Sr. Afonso, um homem muito simples, de origem humilde, que começou como
cambista de moedas na fronteira da Espanha, ao tempo da guerra: ele está
atendendo a várias chamadas telefónicas ao mesmo tempo, do Brasil, de Paris, de
Nova York. Ao seu lado, de pé, o seu genro Rodrigo segura-lhe os fones, fazendo
as trocas de instante a instante, para que o sogro converse um bocadinho com
um, depois com outro, volte àquele cuja conversa foi interrompida e assim vai.
Bom e obediente rapaz, esse seu Rodrigo. Sogro e genro já não pertencem a este nosso
mundo.
O BPM também já morreu, O seu edifício ostenta agora o
logotipo de outro banco.
Logo por ali, na Sá da Bandeira, 56, último andar, ficava
a Pali - Publicidade
Artística Ltda. Laborei lá durante um ano e meio, trazido de Lisboa por um
brasileiro, que por sua vez foi importado da Mac-Cann Erickson do Rio de
Janeiro pelo banqueiro Afonso Pinto de Magalhães. E assim o carioca Eugénio
Lyra Filho transformou um departamento de publicidade em agência, e a agência
em mais uma empresa do conglomerado BPM. O bom Lyra também já se foi, lá no Rio. E onde estariam os outros
camaradas desse tempo, como o belga René Coomans e o velho Mário Frazão? Foi
dele que ouvi uma sábia declaração, sacramentada por um brande: “Escuta-me,
rapaz. Bom não é ser pai. Bom é ser avô. O pai reprime. O avô deixa o neto
fazer o que quiser.” Ele acabava de ganhar um neto. Estava em estado de graça.
Impossível recordar o Frazão sem um bocado de afeto.
Ninguém mais precisa me dizer que A Brasileira está
fechada. Meninos, eu vi. Era em torno dela que homens soturnos gravitavam, até
ficarem de pés redondos. Mas o Majestic continua vivo e ainda aqui, com
toda a sua majestade, na rua de Santa Catarina, onde morei, lá mais para cima,
dividindo um apartamento com o ator Luiz Alberto. Lembranças de um médico
chamado Jorge Tunhas, que aqui lia um livro atrás do outro, enquanto aguardava
ser chamado para a guerra. Uma noite, à véspera do embarque, tomou um pifa
daqueles! Saiu urrando pelas ruas. Urros lancinantes, como uma fera ferida. O
horror da guerra. O Majestic me recorda também uma moça que, nos fins de
tarde, entre um café e outro, me ensinava inglês. No Majestic começo a
leitura do Primeiro de Janeiro pelo
expediente. Quero ver se o Manuel Dias ainda está lá e se já é o seu Director
de Redacção, Editor-Chefe, qualquer coisa assim. Importante! Lembro-me dele
como um gajo esperto, rápido, criativo e... bom de copo! Se talento vale alguma
coisa neste mundo, Manuel Dias já deve ser
o dono do Primeiro
de Janeiro. Decepção: o nome dele sequer figura no expediente. Deixo o jornal de lado.
Não tem Manuel Dias? Não vai ter
este leitor.
Falta-me coragem para subir a rua de Santa Catarina até o
prédio onde morei. Saudades do Sr. Soares, o zelador. Ele adorava uma
bagaceira, que bebia escondido da dona Angelina, nos fundos de uma pequena
mercearia, no outro lado da rua. Depois da terceira dose, puxava a carteira do
bolso e dela retirava um retrato de dona Angelina quando jovem: “Ela é bonita,
não é?” - dizia,
embevecido. Não dava para discordar dele. Mesmo entrada em anos, dona Angelina
continuava uma mulher muito bonita. Todo domingo, religiosamente, ele assava um
bacalhau, que cobria com imensas rodelas de cebola. E eu que não fizesse a
desfeita de faltar ao seu almoço, servido sempre na sua pequena área de serviço.
Jamais alguém neste mundo assou um bacalhau tão bom quanto o do Sr. Soares. Uma
noite, dona Angelina me chamou à sua
casa. Ele estava de cama e queria que eu fosse visitá-lo. Fui imediatamente.
Sentei-me ao seu lado, perguntando se queria que chamasse um médico. Disse que
não. Já estava entupido de remédios. De pé no quarto, dona Angelina reclamava:
o marido não podia continuar bebendo do jeito que bebia, diariamente. Pediu-me
para lhe dar uns conselhos, enfim, que o fizesse parar de beber. Enquanto ela saía
resmungando, o Sr. Soares ordenou-me que levasse a mão por debaixo da cama,
depressa, antes que a sua mulher voltasse. Obedeci-lhe. E fiz a caça ao tesouro
escondido. Entreguei-lhe a garrafa. Com uma sofreguidão infantil, o Sr, Soares
destampou-a e sorveu um trago. Depois estalou os beiços e sorriu, contente da
vida.
Ao se recuperar da doença, procurou-me para dizer que
dona Angelina o havia proibido de beber. Estava muito infeliz por causa disso,
numa desolação de dar dó. Dei-lhe uma cópia da chave do meu apartamento, dizendo-lhe que quando
sentisse vontade de um copo, era só ir lá e procurar um garrafão que estava na
cozinha. Seus olhos brilharam. Ele voltava a ser uma alma deste mundo. Eu não
podia negar esse favor ao homem que fizera de tudo para impedir os moradores - todos os moradores! - de me expulsarem do prédio, por causa da
música que eu ouvia e de uma festa que promovi, para as bailarinas e bailarinos
da Gulbenkian, em apresentação na cidade. O Sr. Soares conseguiu impedir a
minha expulsão com um argumento tirado da manga, como o jogador que puxa a
última carta, ainda que seja um blefe: “O senhor doutor não conhece bem os seus
inquilinos”- disse ele ao proprietário do prédio, acrescentando: “Dia destes,
às duas horas da manhã, uma moradora do segundo andar me acordou para fazer
calar um cachorro que latia na rua. Isso é lá trabalho para um zelador?” O Sr.
Proprietário sorriu e respondeu-lle que podia ir-se, mas que recomendasse ao
brasileiro para não mais
fazer barulho. Estava farto de reclamações. Grande Sr. Soares. Nenhum advogado
teria feito melhor. “A partir de agora, abaixe um pouco a música, senão vou
ficar desmoralizado”- sentenciou o meu competentíssimo defensor.
No dia em que fui embora ele não apareceu. Dona Angelina
chegou até a porta do edifício para um abraço de despedida. “E o Sr. Soares?”
Ela então esclareceu que ele se recusara a se despedir de mim. Na verdade,
estava de cama. Havia adoecido, ao saber que eu ia partir. Que porra. Ele
doente e eu não iria estar mais ali, para caçar o tesouro debaixo da cama, o
único remédio que seria capaz de curá-lo, junto com o meu afeto, quem sabe.
Recordações à mesa do Majestic, observando um cavalheiro de
seus trinta e poucos anos, impecavelmente vestido, que pede café e água, depois
abre o seu laptop, colocado sobre o sofá, e começa a trabalhar, como se
estivesse em casa ou
no seu escritório. De
repente o seu telemóvel toca. Ele leva a mão ao bolso, pega o aparelho e atende
a ligação telefónica. Depois, recoloca o telemóvel no bolso e volta à sua lida,
em frente do computador. Passado algum tempo, desliga-o. Quando volto a
observá-lo, vejo que ele tem uma mão sobre o laptop e a outra está a
mexer e remexer com a colherzinha no açucareiro, e a olhar fixamente para a
parede de vidro na frente do café. Penso ter finalmente reencontrado um
remanescente - ou
herdeiro - dos
homens dos pés redondos, por este olhar tão parado e penetrante, como se fosse
furar a parede. Era uma cena típica da Brasileira. Mas as minhas
recordações dizem menos respeito ao cidadão com todo o jeito de executivo da
era yuppie, do que de amigos de um outro tempo: onde estará e o que faz hoje o
publicitário Carlos Guimarães, que me deu guarida, enquanto eu procurava um
lugar para morar? Foi na casa dele que eu vi, pela TV, o Brasil levar urna
surra de Portugal, na Inglaterra, na Copa do Mundo de 1966, o ano do Euzébio. E
o lisboeta Manuel Pena Costa, director da Manpower Portuguesa, ainda passa
temporadas por aqui, na condução de seus negócios, e a sorver uma ginginha,
depois do expediente, para espantar o frio? E a actriz Mirna Vaz, que papel
andará desempenhando? A ex-Miss Objectiva de Portugal Lydia Franco terá voltado
a apresentar-se aqui com o balé da Gulbenkian? Em que palco o Luiz Alberto será
encontrado? E Isabel Ruth, teria voltado ao Porto, depois daquele ano em que
actuou no filme Mudar de Vida, de Paulo Rocha, rodado ali perto, em
Furadouro-Ovar? E Paulinha Guedes, que conheci criança e se tornou uma bela
actriz, alguma vez revisitou Matosinhos? O realizador de cinema José Fonseca e
Costa ainda se lembrará que foi ele quem me trouxe de carro, num belo dia
ensolarado, quando vim para morar, deixando-me na Brasileira, aos
cuidados do Carlos Guimarães?
Essa peregrinação memorialística vai levar a uma noticia
triste: amanhã o Manuel Dias nos informará, a mim e ao professor Saraiva, que o
nosso grande amigo Alberto Sérgio, o bancário e jornalista esportivo, já não
poderá mais, nunca mais, ser convidado para o almoço, como nos velhos tempos.
Faz um ano que
ele mudou-se do Porto para a cidade dos pés juntos. E assim, o meu Porto
revivido não deixou também de ter uma nota de melancolia, como que saída de uma
página de Scott Fitzgerald, num de seus textos mais candentes, intitulado Minha
Cidade Perdida.
3.
O meu centro de gravitação no Porto era esse mesmo que é
chamado de “cidade histórica.” Das sombras do BPM à rua de Santa Catarina,
almoço e jantar no Rei dos Fritos, na Praça de São Lázaro, onde havia um
reservado para a malta da Escola de Belas Artes, a do Teatro Experimental e
este redactor. Ao final das refeições, uma moça chamada Izilda, filha do dono
da casa, trazia as contas e um livro comprido, no qual cada um procurava o seu
nome e anotava a sua despeza do dia, para pagar no fim do mês. Especialidades
do Rei dos Fritos: tripas á moda do Porto (naturalmente) e papas de
sarrabulho. Mas o cardápio era bem variado. Ali comia-se a gosto, fartamenle, e
barato. E ainda com a vantagem do pendura. Depois do almoço, café com
brande no Belas Artes, na outra ponta da Praça de São Lázaro. Quando o
dinheiro dava, íamos ao Chez Lapin, na Ribeira, agora o point da
moda, da muvuca (tradução: agito, barulho, ajuntamento de pessoas, para
beber, namorar, divertir-se), com todas as incoveniências disto, não certamente
para os negócios.
Fora deste
polígono, fico perdido, ainda mais agora, com as mudanças que a cidade sofreu, principalmente para além do seu perímetro histórico. Talvez precisasse morar mais um
ano e meio no Porto, para adaptar-me às exigências que a contemporaneidade lhe
impôs, e aceitá-las sem traumas, como o fazem seus habitantes, com um indisfarçável orgulho. A questão é simples e compreensível: se revivi o
seu lado antigo e pouco ou nada vivi o novo, é porque foi no Porto histórico que tive uma história. Seja como for, “Biba o Puerto,
carago!!!”
*Texto publicado
originalmente na revista Terceira Margem, da Universidade do Porto.